Revista Jurídica Cajamarca

 
 

 

A opção do judiciário brasileiro em face dos conflitos entre tratados internacionais e leis internas (*)

Valerio de Oliveira Mazzuoli  (**)


 

(Estudo em homenagem à Dra. Mirtô Fraga, Consultora da União)

Presidente Prudente-SP, 2001

 

1.      INTRODUÇÃO

 

Este trabalho, escrito em homenagem à Dra. Mirtô Fraga, se propõe a estudar a maneira pela qual o judiciário brasileiro, em especial o Supremo Tribunal Federal, se relaciona com o problema concernente ao conflito entre tratados internacionais e leis internas.

Para tanto, num primeiro momento, verificou-se como a Excelsa Corte brasileira se relaciona com o conflito entre tratados internacionais e leis internas, para, em seguida, estudar-se quais as conseqüências deste posicionamento. Por fim, foram tecidas críticas à posição do STF no que atine a esta matéria, concluindo-se pela superioridade dos tratados internacionais em face da legislação interna infra-constitucional.

 

2.      HIERARQUIA ENTRE OS TRATADOS E A LEI INTERNA: O CASO BRASILEIRO

 

O texto constitucional de 1988, como se sabe, salvo no que diz respeito aos tratados de proteção dos direitos humanos, que têm índole e nível constitucional (art. 5.º, § 2.º), em nenhum de seus dispositivos estatuiu, de forma clara, qual a posição hierárquica do direito internacional perante o nosso direito interno. Deixou para a jurisprudência e para a doutrina esta incumbência. A Excelsa Corte brasileira (Supremo Tribunal Federal), há mais de vinte anos (desde 1977) já firmou de modo praticamente absoluto seu posicionamento no que diz respeito a esta matéria. Esclareça-se que estamos tratando, aqui, dos tratados internacionais comuns ou tradicionais. A sistemática de incorporação dos tratados de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro não é objeto deste estudo.[1]

Assim é que, no que toca à questão da hierarquia entre os tratados internacionais (tradicionais) e a lei interna brasileira, importante é verificarmos o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nesse tema, ao longo desses mais de vinte anos, e quais as discussões que se travam até hoje em nossa doutrina. Vejamos.

O problema da concorrência entre tratados internacionais e leis internas de estatura infraconstitucional, pode ser resolvido, no âmbito do direito das gentes, em princípio, de duas maneiras. Numa, dando prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitucional, a exemplo das constituições francesa de 1958 (art. 55), grega de 1975 (art. 28, § 1.º) e peruana de 1979 (art. 101), garantindo ao compromisso internacional plena vigência, sem embargo de leis posteriores que o contradigam. Noutra, tais problemas são resolvidos garantindo-se aos tratados apenas tratamento paritário, tomando como paradigma leis nacionais e outros diplomas de grau equivalente.[2] Ou seja, havendo conflito entre tratado e lei interna a solução é encontrada aplicando-se o princípio lex posterior derogat priori. O Brasil, segundo a Egrégia Corte, enquadra-se nesse segundo sistema (monismo nacionalista moderado). Há mais de vinte anos (desde 1977, como já se falou) vigora na jurisprudência do STF o sistema paritário onde o tratado, uma vez formalizado, passa a ter força de lei ordinária (v. RTJ 83/809 e ss.), podendo, por isso, revogar as disposições em contrário, ou ser revogado (rectius: perder eficácia) diante de lei posterior.[3]

Nesse sentido a lição do Ministro Francisco Rezek: “De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se, no plenário do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004, em que assentada, por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflito entre o tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela Justiça – sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado, no plano internacional. (…) Admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico”.[4]

Esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em 1977, insta esclarecer, veio modificar seu anterior ponto de vista que apregoava o primado do direito internacional frente ao ordenamento doméstico brasileiro. De forma que estamos diante de um verdadeiro retrocesso no que diz respeito à matéria. Philadelpho Azevedo, já publicara, em 1945, quando ainda Ministro do Supremo Tribunal Federal, admite o Ministro Rezek, comentário em que demonstrava a convicção unânime da Suprema Corte, àquela época, quanto à prevalência dos tratados internacionais sobre o direito interno infraconstitucional.[5] A nova posição da Excelsa Corte, entretanto, enraizou-se de tal maneira que o Ministro Francisco Rezek, lembra-nos Jacob Dolinger, emitiu pronunciamento de forma assaz contundente, dizendo da “prevalência à última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isto importasse o reconhecimento da afronta, pelo país, de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como dar remédio (Extradição n.º 426, in RTJ 115/973)”.[6]

Desde já, é necessário dizer, a par do que já se viu, que o estudo das relações entre o Direito Internacional e o ordenamento interno, no que diz respeito à hierarquia dos tratados, se afigura um dos mais difíceis de se compreender, pois consiste em sabermos qual o tipo de relações que mantêm entre si.[7] O ponto nevrálgico da questão consiste em saber-se qual das normas deverá prevalecer em havendo conflito entre o produto normativo convencional (norma internacional) e a norma interna. A primeira questão a analisar-se, então, diz respeito à validade desses tratados no nosso ordenamento jurídico interno.

3.      PARIDADE NORMATIVA DECLARADA PELA EXCELSA CORTE: APLICAÇÃO DA REGRA “LEX POSTERIOR DEROGAT PRIORI”

 

A conclusão que chegou o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 80.004-SE (RTJ 83/809) foi a de que dentro do sistema jurídico brasileiro, onde tratados e convenções guardam estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado, a normatividade dos tratados internacionais, permite, no que concerne à hierarquia das fontes, situá-los no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as nossas leis internas.[8] Trata-se da consagração do monismo moderado, cuja concepção já foi firmada e sedimentada pelo Supremo Tribunal Federal,[9] sem embargo de vozes atualíssimas a proclamar a supremacia dos tratados de direitos humanos.[10]

Seguindo esse raciocínio, surge uma indagação curiosa: com a ratificação, pelo Brasil, desses tratados internacionais, vindo estes a conflitar com o texto constitucional, os dispositivos em contrário contidos na Carta da República poderiam deixar de ser aplicados? Segundo a orientação do STF, não. À exceção da Constituição holandesa que, após a revisão de 1956, permite em certas circunstâncias, que tratados internacionais derroguem seu próprio texto, é muito difícil que uma dessas leis fundamentais despreze, neste momento histórico, “o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si mesma, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado”.[11] De forma que, “posto o primado da constituição em confronto com a norma pacta sunt servanda” – explica o Ministro Rezek –, “é corrente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito pelo qual, no plano externo, deve aquele responder”.[12]

Nas palavras de Flávia Piovesan: “Acredita-se que o entendimento firmado a partir do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004 enseja, de fato, um aspecto crítico, que é a sua indiferença às conseqüências do descumprimento do tratado no plano internacional, na medida em que autoriza o Estado-parte a violar dispositivos da ordem internacional – os quais se comprometeu a cumprir de boa-fé. Esta posição afronta, ademais, o disposto pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que determina não poder o Estado-parte invocar posteriormente disposições de direito interno como justificativa para o não cumprimento de tratado. Tal dispositivo reitera a importância, na esfera internacional, do princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado, com o qual livremente consentiu. Ora, se o Estado no livre e pleno exercício de sua soberania ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seu cumprimento. Além disso, o término de um tratado está submetido à disciplina da denúncia, ato unilateral do Estado pelo qual manifesta seu desejo de deixar de ser parte de um tratado. Vale dizer, em face do regime de direito internacional, apenas o ato da denúncia implica na retirada do Estado de determinado tratado internacional. Assim, na hipótese de inexistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade do Estado na ordem internacional”.[13]

Em suma, a par de todas as críticas, com esse entendimento da Excelsa Corte, a norma convencional passou a ser considerada como tendo o mesmo status e valor jurídico das demais disposições legislativas internas.[14] E, desta forma, aos tratados internacionais seria vedado disciplinar matéria reservada à lei complementar.

Bastante ilustrativa a discussão suscitada no Excelso Pretório em torno da recepção da Convenção 158 da OIT: “O relator enfatizou em seu voto que a Convenção 158 consubstancia a adoção, pelo Estado brasileiro, de verdadeiro compromisso de legislar sobre a matéria nela versada, com observância dos preceitos constitucionais pertinentes. Salientou-se, ainda, no voto do relator, que os tratados e convenções internacionais, ainda que guardando relação de paridade normativa com o ordenamento infraconstitucional, não podem disciplinar matéria sujeita à reserva constitucional de lei complementar” (ADIn 1.480-UF, rel. Min. Celso de Mello, 25.09.96). “Vencido o Ministro Carlos Velloso, que proferiu voto-vista no sentido do indeferimento da cautelar por entender que a referida Convenção ter-se-ia incorporado ao direito brasileiro como lei complementar – exigida pelo art. 7º, I, da CF (‘São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;’) – cujas normas seriam auto-aplicáveis, e os Ministros Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence que, embora concordando com as premissas do voto do Min. Celso de Mello ao salientar o caráter programático da Convenção impugnada, indeferiam a liminar por entender não haver ambigüidade no texto que justificasse o seu deferimento parcial com a utilização da técnica da interpretação conforme à Constituição (ADIn 1.480-UF, rel. Min. Celso de Mello, 4.9.97).

Enfim, segundo o posicionamento da Excelsa Corte, que, de resto, vem sendo seguido até os dias atuais, a Constituição da República, ao tratar da competência do Supremo Tribunal Federal, teria colocado os tratados internacionais pelo Brasil ratificados, no mesmo plano hierárquico das normas infraconstitucionais, o que reflete a concepção monista moderada. Assim é que, quando a Carta de 1988 diz competir ao STF julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, “quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”, estaria ela igualando em mesmo grau de hierarquia os dois diplomas legalmente vigentes. Desta feita, em caso de conflito entre a norma internacional e a lei interna, de aplicar-se o princípio geral relativo às normas de idêntico valor, isto é, o critério cronológico, onde a norma mais recente revoga a anterior que com ela conflite. Na afirmativa de Francisco Campos, mesmo quando a Constituição manda incorporar ao direito interno as normas provenientes do direito internacional, isto “não significa que o Corpo Legislativo fique impedido de editar novas leis contrárias ao disposto nos tratados. O único efeito de recepção do direito internacional no quadro do direito interno é de dar força de lei às normas jurídicas assim incorporadas à legislação. Neste caso, os tratados valerão como lei e, nesta qualidade, serão aplicados pelos Tribunais, da mesma maneira, na mesma extensão e com a mesma obrigatoriedade própria à aplicação do direito interno”.[15]

Seguindo este entendimento firmado pela Suprema Corte, qualquer tratado internacional, desde que ratificado pelo Estado brasileiro e devidamente promulgado internamente, passa a fazer parte do nosso direito interno, no âmbito da legislação ordinária.[16] Esta, como é sabido, não tem força nenhuma para modificar o texto constitucional. Isto porque, a Carta Magna, como expressão máxima da soberania nacional, como quer o Supremo Tribunal Federal, está acima de qualquer tratado ou convenção internacional que com ela conflite.[17]

Este posicionamento pode ser percebido com clareza meridiana em recente despacho monocrático proferido pelo Ministro Celso de Mello, como presidente do STF, no HC 77.631-5/SC, publicado no DJU 158-E, de 19.08.1998, Seção I, pág. 35, onde aborda a prescrição do § 2.º do art. 5.º da Constituição, fazendo referência expressa ao Pacto de San José da Costa Rica que proíbe, nos países que o aderiram, a prisão de depositário infiel.[18] O ilustre Ministro deixou firmada a seguinte lição (excerto): “A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não impede que o Congresso Nacional em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual destinado a compelir o devedor a executar obrigação que lhe foi imposta pelo ordenamento positivo, nos casos expressamente autorizados pela própria Constituição da República. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. (…) Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5.º, § 2.º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5.º, LXVII) –, o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar. (…) A indiscutível supremacia da ordem constitucional brasileira sobre os tratados internacionais, além de traduzir um imperativo que decorre de nossa própria Constituição (art. 102, III, b), reflete o sistema que, com algumas poucas exceções, tem prevalecido no plano do direito comparado, que considera inválida a convenção internacional que se oponha, ou que restrinja o conteúdo eficacial, ou ainda, que importe em alteração da Lei fundamental (Constituição da Nicarágua de 1987, art. 182; Constituição da Colômbia de 1991, art. 241, n.º 10; Constituição da Bulgária de 1991, art. 149, § 1.º, n.º 4, v.g.). (…) Desse modo, não há como fazer abstração da Constituição para, com evidente desprestígio da normatividade que dela emana, conferir, sem razão jurídica, precedência a uma convenção internacional”.[19]

A doutrina da Excelsa Corte, entretanto, peca pela imprecisão. Admitir que um compromisso internacional perca vigência em virtude da edição de lei posterior que com ele conflite é permitir que um tratado possa, unilateralmente, ser revogado por um dos Estados-partes, o que não é permitido e tampouco compreensível.[20] Seria fácil burlar todo o pactuado internacionalmente se por disposições legislativas internas fosse possível modificar tais normas. Se um Estado se obriga livremente a cumprir um acordo internacional, como explicar possa ele editar leis contrárias a todo o pactuado? Qual o valor de um tratado se por meio de lei interna se pudesse deixar de aplicá-lo? Seria muito simples admitir que o não cumprimento de um tratado, internamente, pudesse acarretar a prática de um ilícito internacional, pelo qual, externamente, devesse o Estado responder. Com uma tal assertiva parece que o não cumprimento de tratados encontraria justificativa. Tudo fica muito fácil desse modo.

Este entendimento, entretanto, não é aceitável e muito menos permitido. Não raras as vezes, o objetivo de um tratado internacional é o de justamente incidir sobre situações que deverão ser observadas no plano interno dos Estados signatários.[21] Aprovando um tratado internacional, o Poder Legislativo se compromete a não editar leis a ele contrárias. Pensar de outra forma seria admitir o absurdo. E Mirtô Fraga exemplifica desta maneira: “Se o Brasil, por exemplo, firmou convenção com Portugal, obrigando-se a reconhecer a portugueses, aqui residentes, os mesmos direitos do nacional, a não-edição do regulamento, por si só, já constituiria um ilícito internacional, que teria maior gravidade se, posteriormente ao convencionado, se editasse norma jurídica excluindo os portugueses, beneficiários da igualdade, do direito, por exemplo, de prestar concurso, para determinado cargo não-privativo de brasileiro nato”. E continua: “É um contra-senso afirmar-se que o Tribunal deve aplicar a lei posterior contrária ao tratado e admitir-se, ao mesmo tempo, a responsabilidade do Estado. Este é livre para contratar ou deixar de contratar. Afirmar, como muitos, que o Poder Executivo não pode, pela celebração do tratado, limitar a competência e a liberdade do poder Legislativo seria válido, se ocorresse no século XVIII. O monarca, então, personalizava o Estado, a soberania residia na pessoa do governante. Com o advento da Revolução Francesa e das idéias liberais, a soberania foi transladada para a nação, representada nas Assembléias. O pacto, o ajuste, era, então, um ato do governante, em oposição à lei, ato da soberania nacional. E como o poder pertencia ao povo, o compromisso firmado pelo soberano não podia obrigar a nação, à qual era permitido dispor de forma contrária ao pactuado, em seu nome e sem sua audiência. A manifestação obrigatória do Poder Legislativo sobre os tratados assinados pelo Chefe de Estado surgiu, justamente, como resultado da democratização do poder. Na época atual, admitir-se possa o Legislativo, por lei, contrariar o tratado, que aprovou, é, em suma, reconhecer o predomínio das Assembléias, em franca oposição a dispositivo constitucional que declara harmônicos e independentes os Poderes do Estado, se não há, para tanto, expressa autorização da Lei Maior”.[22]

Aprovado o tratado pelo Congresso, e sendo este ratificado pelo Presidente da República, suas disposições normativas, com a publicação do texto, passam a ter plena vigência e eficácia internamente. E de tal fato decorre a vinculação do Estado no que atine à aplicação de suas normas, devendo cada um dos seus Poderes cumprir a parte que lhes cabe nesse processo: ao Legislativo cabe aprovar as leis necessárias abstendo-se de votar as que lhe sejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentá-las, fazendo todo o possível para o cumprimento de sua fiel execução; e ao Judiciário incumbe o papel preponderante de aplicar os tratados internamente bem como as leis que o regulamentam, afastando-se da aplicação de leis nacionais que lhes sejam contrárias.[23]

Se o Congresso Nacional dá sua aquiescência ao conteúdo do compromisso firmado, é porque implicitamente reconhece que, se ratificado o acordo, está impedido de editar normas posteriores que o contradigam.[24] Assume o Congresso, por conseguinte, verdadeira obrigação negativa, qual seja, a de se abster de legislar em sentido contrário às obrigações assumidas. Admitir, pois, que o Legislativo possa editar lei, revogando o tratado anteriormente firmado, “é reconhecer o predomínio das Assembléias, em oposição a comando superior que declara harmônicos e independentes os Poderes do Estado”.[25] E, se porventura editadas, tais leis jamais terão o condão de afastar a aplicação interna do tratado concluído anteriormente.

Respalda-se este argumento na teoria do ato próprio (“venire contra factum proprium non valet”), pois, se nem mesmo o Estado pode atuar contra seus próprios atos anteriores, cabe reconhecer que se o Congresso, pela via ordinária, edita leis contrárias às disposições do tratado anteriormente assumido, está obrando em oposição à conduta que teve anteriormente de permitir o ingresso de tal instrumento no ordenamento nacional, agindo, por conseguinte com má-fé internacional, ato inadmissível aos olhos do direito das gentes.

Vige assim, nesta matéria, a regra segundo a qual pacta sunt servanda, internacionalmente reconhecida como norteadora dos compromissos exteriores do Estado.

Nunca é demais lembrar que a infração desses deveres, por meio dos poderes do Estado, acarreta a responsabilidade do Estado no âmbito internacional.

Há um outro ponto, entretanto, que merece ser lembrado, e que diz respeito à questão da especialidade das leis no sistema jurídico brasileiro.[26] Neste compasso, pode parecer que, a princípio, tanto os tratados como as convenções internacionais, sendo lei nova, têm força para revogar as leis infra-constitucionais anteriores a sua ratificação, que disciplinem, de modo diverso, as mesmas matérias por eles disciplinadas. Não havendo na Constituição brasileira garantia de privilégio hierárquico dos tratados internacionais sobre o nosso direito interno, deve ser garantida a autoridade da norma mais recente, pois é paritário (repete-se: segundo o STF) o tratamento brasileiro, dado às normas de direito internacional, o que faz operar em favor delas, neste caso, a regra lex posterior derogat priori.

Entretanto, não é bem assim que isso funciona. O Supremo Tribunal Federal, a esse respeito, vem, ultimamente, valendo-se de um outro argumento jurídico, relativo à especialidade das leis no ordenamento brasileiro. Assim é que a prevalência de certas normas de direito interno (v.g. o Decreto-lei n.º 911/69, que permite a prisão civil do devedor-fiduciante, equiparado que é a um depositário) sobre as de direito internacional (v.g. o Pacto de San José da Costa Rica, que não permite, por sua vez, a prisão civil por infidelidade depositária) decorre de primados do próprio STF, com base na especialidade das leis no sistema jurídico constitucional.

Este argumento, entretanto, não procede. É equívoco dizer que o art. 7.º, n.º 7, do Pacto de São José da Costa Rica, “não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel”, pois, tomando como exemplo o art. 4.º do Decreto-lei n.º 911/69 (“Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil”), o que se constata é que não existe, in casu, norma infraconstitucional especial: há, em verdade, mera remissão às normas infraconstitucionais gerais atinentes à prisão civil do infiel depositário.

Em casos de extradição, o STF tem considerado que a lei interna (Lei n.º 6.815/80), por ser lei geral, deve ceder ao tratado, que é regra especial: “No sistema brasileiro, ratificado e promulgado, o tratado bilateral de extradição se incorpora, com força de lei especial, ao ordenamento jurídico interno, de tal modo que a cláusula que limita a prisão do extraditado ou determina a sua libertação, ao termo de certo prazo (quarenta e cinco dias contados do pedido de prisão preventiva), cria direito individual em seu favor, contra o qual não é oponível disposição mais rigorosa da lei geral (noventa dias, contados da data em que efetivada a prisão – art. 82, §§ 2.º e 3.º da Lei n.º 6.815/80) [grifo nosso] (RTJ 162:822, 1997, Extr. 194-República Argentina, rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Enfim, o argumento que vem sendo utilizado pela Suprema Corte brasileira, no que tange a alguns casos de conflito entre tratado e lei interna, diz respeito à especialidade das leis. É dizer, uma lei geral não pode derrogar uma lei especial. Segundo o seu entendimento (cf. HC 72.131-RJ), nem toda lei nova, somente porque é lei nova, tem força para revogar uma lei anterior que com ela conflita. Não basta somente ser lei nova. Exige-se mais: além de nova, deve ser apta a revogar a lei anterior. E esta qualidade só se verifica nas hipóteses em que ambas as leis (nova e anterior), sejam gerais, ou ambas sejam especiais.

A Excelsa Corte, não permite, assim, que uma norma de caráter geral (como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica), derrogue uma lei anterior que, em relação a ela, seja especial (caso do Decreto-lei n.º 911/69). Essa orientação vem sendo prestigiada na Suprema Corte até os dias atuais, tendo sido adotada no despacho proferido na ADIn n.º 1.480-3-DF, bem como na Carta Rogatória n.º 8.279-4 da República da Argentina. Assim é que, nas palavras do Ministro Celso Mello, “a eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá – presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico –, não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade (RTJ 70/333; RTJ 100/1030; RT 554/434)”.

Fato curioso é que, antes da Constituição de 1988, o STF já tinha se pronunciado a respeito da orientação de vigência e eficácia imediatas, no ordenamento interno brasileiro, dos pactos, tratados e convenções internacionais em geral, de que o Brasil seja signatário. Esse pronunciamento foi dado a propósito da Convenção de Genebra da Lei Uniforme sobre Cheques,[27] por votação unânime, em 04.08.1971, no RE n.º 71.154-PR (RTJ 58/70), de que foi relator o Min. Oswaldo Trigueiro, no sentido de que não é razoável que a validade dos tratados fique condicionada à dupla manifestação do Congresso Nacional,[28] exigência que nenhuma das nossas Constituições jamais prescreveu.[29] Isto é, não se exige, além da aprovação do tratado, a edição de um segundo diploma legal (específico) que reproduza as normas modificadoras. Na ementa deste mais antigo precedente da Excelsa Corte sobre a matéria, datado de 1971, a tese foi a de que “aprovada a Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna”. E finalmente o Pleno do STF, no RE n.º 71.154-PR, em 04.08.1971, adotando o voto do rel. Min. Oswaldo Trigueiro, concluiu:

“Por outro lado, acho que, em virtude dos preceitos constitucionais anteriores citados, a definitiva aprovação do tratado, pelo Congresso Nacional, revoga as disposições em contrário da legislação ordinária” [grifo nosso].[30]

Deve-se esclarecer que, em razão deste entendimento, os tratados internacionais ingressam no ordenamento brasileiro com vida própria, com força própria, sendo o Decreto Presidencial que os promulga a via pela qual somente se dá publicidade ao conteúdo dos tratados, fixando-lhes também o início de vigência.[31] Não é, assim, o Decreto Presidencial, o diploma que dá validade ao tratado; serve ele tão somente para dar-lhe publicidade e fixar o início de sua vigência.[32] Recentemente, entretanto, em mais uma de suas mutações, o STF passou a ter entendimento oposto, qual seja, o de que “o decreto presidencial que sucede à aprovação congressual do ato internacional e à troca dos respectivos instrumentos de ratificação, revela-se – enquanto momento culminante do processo de incorporação desse ato internacional ao sistema jurídico doméstico – manifestação essencial e insuprimível, especialmente se considerados os três efeitos básicos que lhe são pertinentes: a) a promulgação do tratado internacional; b) a publicação oficial de seu texto; e c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno”.[33]

Trata-se, agora, da aplicação da teoria dualista moderada, que somente se satisfaz, para efeito da executoriedade doméstica dos tratados internacionais ratificados, além da aprovação congressual, com a promulgação executiva do texto convencional pelo Presidente da República.

Alguns anos mais tarde, o plenário do Supremo Tribunal Federal voltaria a se manifestar em relação à matéria, no famoso caso do conflito surgido entre a Lei Uniforme de Genebra sobre as letras de câmbio e notas promissórias e o posterior Decreto-lei n.º 427/69, que admitia como sendo causa de nulidade do título a falta de registro da nota promissória, disposição não admitida pelo texto (anterior) de Genebra como sendo causa de nulidade.[34] E a decisão do Excelso Pretório foi colocada nestes termos:

“Embora a Convenção de Genebra, que previu uma Lei Uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias, tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do país, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqüente validade do Decreto-lei 427/69, que instituiu o registro obrigatório da nota promissória em Repartição Fazendária, sob pena de nulidade do título” (publicado na íntegra o Acórdão na RTJ 83/809-848, RE 80.004-SE, relator do Acórdão Min. Cunha Peixoto, de 01.06.1977).[35]

Apesar de a conclusão contida no julgamento plenário do HC 72.131-RJ, de 23.11.1995, de que foi relator designado o Min. Moreira Alves, harmonizar-se com a tese genérica estabelecida no precedente do RE n.º 71.154-PR, de 04.08.1971, de que foi relator o Min. Oswaldo Trigueiro, desce ela, entretanto, a uma particularidade: a especialidade, que não esteve presente na convenção objeto do antigo precedente.[36]

Assim, ficou assentada por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflito entre o tratado (Lei Uniforme de Genebra) e a lei posterior (Decreto-lei n.º 427/69), esta é que deveria prevalecer, porque expressão última da vontade do legislador republicano, sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado no âmbito internacional.[37] Garantiu-se a autoridade da lei mais recente (lex posterior derogat priori), porque, não havendo na Constituição garantia de privilégio hierárquico, paritária seria sua estatura no ordenamento jurídico nacional. Ficou afastada, assim, a orientação que vinha norteando a jurisprudência da Suprema Corte, em seus primeiros julgamentos, no sentido de dar primazia ao direito internacional em relação ao direito interno.

Por fim, cumpre apenas fazer a observação de que, a partir da Emenda n.º 7, de 15 de agosto de 1995, que modificou a redação do art. 178 da Constituição de 1988, nova regra sobre as relações entre tratados e atos internacionais passou a ter existência, segundo o teor do citado artigo, cuja redação passou a ser a seguinte:

“A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”.

Em resumo, além do critério lex posterior derogat priori, o Supremo Tribunal Federal (e essa conclusão se extrai de seus próprios primados), aplica ainda um outro, qual seja, o da lex posterior generalis non derogat legi priori speciali, através do qual algumas leis internas infraconstitucionais têm prevalência sobre os tratados internacionais, por serem estes considerados normas também infraconstitucionais gerais que, por esse motivo, não estão aptos a revogar normas infraconstitucionais especiais anteriores. Ou seja, “leis especiais não se hão de reputar revogadas pelas gerais, salvo quando expressamente regulem a matéria ou explicitem a revogação”.[38]

Trata-se da consagração pelo judiciário brasileiro da velha lição de Papiniano: In toto jure generi per speciem derogatur, et illud potissimum habetur quod ad speciem directum est (“em toda disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie”).[39]

 

4.      NOSSO POSICIONAMENTO FRENTE À POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

 

Sem embargo da posição da Excelsa Corte brasileira no que tange ao conflito entre tratados internacionais e normas de direito interno, firmada com base em argumentos aparentemente “constitucionais”, estamos convictos de que a solução do problema deve ser resolvida fazendo-se uma interpretação conjugada de alguns dispositivos constitucionais com as regras de direito internacional público, em particular da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.

Mas, antes de qualquer argumentação, vale a pena atentarmos para uma tese bastante inovadora (ou ousada, se assim preferir o leitor) defendida, ineditamente, pelo professor argentino German J. Bidart Campos, que pretende por termo à discussão acerca da hierarquia dos tratados internacionais em face das Constituições.

Assim é que, para Bidart Campos, em textos constitucionais que não contém cláusulas expressas definindo a supremacia dos tratados face ao direito interno (como é o caso da Constituição brasileira, no que respeita aos tratados comuns), é possível encontrar, algum ou alguns enunciados normativos que expressem, ainda que implicitamente, esta postura.[40] Para ele, quando com uma fórmula ou com outra uma Constituição declara que o Estado respectivo reconhece ou acata os princípios ou as normas de direito internacional, é porque assume o art. 27 da Convenção de Viena, já estudado neste trabalho, que, outorgando prioridade ao direito internacional sobre a jurisdição doméstica, dispõe não poder uma parte invocar disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Ou seja, se o direito internacional contemporâneo estabeleceu em norma escrita (art. 27 da Convenção de Viena) um princípio geral de direito consuetudinário, qual seja, o da prelação do mesmo direito internacional sobre o direito interno, as Constituições que “expressamente acolhem ou acatam os princípios ou as normas gerais de direito internacional estão tornando seus, de maneira implícita, aquele princípio inveterado da primazia do direito internacional”.[41]

O direito internacional, para Bidart Campos, que situa suas normas a tão alto nível, não faz discriminação alguma entre Constituição e leis internas, pois está diretamente acima de todo o direito interno. Eis sua lição: “La interpretación coherente y de buena fe que el derecho internacional merece, parece darnos razón: no es congruente que una constitución reconozca o admita el ingreso del derecho internacional, y le niegue supremacía respecto de ella misma. ¿Qué clase de recepción condicionada es ésta: se reconoce, pero se lo infraconstitucionaliza? No le vemos lógica, porque es aceptar primero una cosa, y de inmediato introducir excepciones reñidas con el principio general. La constitución vendría a enunciar algo como esto: acato, incorporo y reconozco en el derecho interno al derecho internacional, pero no a su principio básico que le atribuye la primacía por sobre mí; en consecuencia, lo acato, incorporo y reconozco, pero por debajo de mí y, en todo caso, sólo por arriba de las leyes”.[42]

Em suma, a inovadora tese de Bidart Campos propõe que, mesmo aquelas Constituições que hierarquizam os tratados internacionais em nível a elas inferior, caso contenham normas ou regras de aceitação ou reconhecimento dos princípios de direito internacional, ou dos tratados, estão aceitando e acatando, com esta mesma cláusula, as normas provenientres de tratados, que subordinam todo o direito interno ao direito internacional.[43]

Na Carta brasileira de 1988, entretanto, não existe sequer uma cláusula de reconhecimento ou aceitação do direito internacional pelo nosso direito interno, como existente na Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), que expressamente dispõe, em seu art. 25, que as normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal e sobrepõe-se às leis nacionais. O que existe na Constituição brasileira, e isto já foi analisado, é um rol de princípios pelos quais o Brasil se rege em suas relações internacionais, consagrados pelo art. 4.º, bem como disposições referentes à aplicação dos tratados pelos Tribunais nacionais (arts. 102, III, b, 105, III, a 109, inc. III e V). Mas, regra expressa de reconhecimento ou aceitação do direito internacional pelo direito interno – repita-se –, à exceção dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, inexiste na Carta Constitucional brasileira.

 

5.      CONCLUSÃO

 

Assim, em nosso entender, os tratados internacionais comuns ratificados pelo Brasil situam-se em um nível hierárquico intermediário: estão abaixo da Constituição mas acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior, posto não se encontrarem em situação de paridade normativa com as demais leis nacionais.

Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, por sua vez, como já deixamos consignado em tantos outros estudos sobre o tema, têm o status de “norma constitucional”, não podendo ser abolidos sequer por emenda à Constituição.[44]

 

6.      BIBLIOGRAFIA

 

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  NOTAS:

[1].      Para o estudo da matéria vide o nosso Direitos humanos & relações internacionais, p. 93 e ss.

[2].      Cf. José Francisco Rezek. Direito internacional público…, p. 104.

[3].      Cf. Luiz Flávio Gomes, “A questão da obrigatoriedade dos tratados…”, RT 710/26. Para Maria Helena Diniz: “O critério lex posterior derogat legi priori significa que de duas normas do mesmo nível ou escalão, a última prevalece sobre a anterior”. E continua: “Ensina-nos Alf Ross que, indubitavelmente, trata-se de um princípio jurídico fundamental, mesmo que não esteja expresso em norma positiva. O legislador pode revogar lei anterior, criando uma nova lei com ela incompatível, que ocupará seu lugar.  Mas não se pode, continua ele, elevar esse princípio à categoria de axioma absoluto, porque a experiência demonstra que pode ser deixado de lado se contrariar certas considerações. Logo esse princípio só poderá ser caracterizado como um dos mais importantes princípios de interpretação, já que sua força variará conforme os diferentes casos de inconsistência. Deveras, se: a) a inconsistência for total, será difícil deixar de lado o critério lex posterior derogat legi priori; b) a inconsistência for total-parcial, sendo a última norma especial, a lex posterior operará conjuntamente com a lex specialis; c) houver inconsistência de norma especial anterior e norma geral posterior, a lex specialis pode, conforme o caso, prevalecer sobre a lex posterior; d) a inconsistência for parcial, a lex posterior apoiará a presunção de que a norma mais recente prefere a anterior, mas nem sempre. A lex posterior apenas será aplicada se o legislador teve o propósito de afastar a anterior. Todavia, nada obsta que tenha tido a intenção de incorporar nova norma, de modo harmônico, ao direito existente. A decisão sobre qual das duas possibilidades deve ser aplicada ao caso concreto dependerá de uma resolução alheia ao texto” (Conflito de normas, p. 35-36).

[4].      José Francisco Rezek. Direito internacional público…, p. 106-107.

[5].      Cf. José Francisco Rezek. Idem, p. 106; cf. Philadelpho Azevedo. “Os tratados e os interesses privados em face do direito brasileiro”, BSBDI (1945), v. 1, p. 12-29.

[6].      Jacob Dolinger. A nova Constituição e o direito internacional. Rio: Freitas Bastos Editora, 1987, p. 13.

[7].      Para o estudo da matéria, vide Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de direito internacional público, 1.º vol., p. 103-117.

[8].      Cf. Acórdão n.º 662-2, do processo de Extradição julgado pelo Tribunal Pleno do STF, em decisão majoritária, aos 28.11.96 (DJ, 30.05.97, p. 23.176), rel. Min. Celso de Mello.

[9].      Para Luiz Flávio Gomes: “Desde 1977 o STF vem sustentando, em síntese, o sistema paritário (o tratado eqüivale à lei). A Constituição de 1988, embora contasse durante seus trabalhos com inúmeras contribuições, ‘passou ao largo do problema’, na expressão de Grandino Rodas (1991, p. 54). Logo, cuida-se de entendimento que não conflita com o texto constitucional atual, podendo-se afirmar que foi recepcionado”. (“A questão da obrigatoriedade dos tratados…”, p. 28).

[10].    A este propósito vide Valerio de Oliveira Mazzuoli, “A influência dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos…”, p. 90 e ss; e, também, “A Constituição de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos”, p. 30 e ss.

[11].    Cf. José Francisco Rezek. Direito internacional público…, p. 103.

[12].    José Francisco Rezek. Idem, p. 103-104.

[13].    Flávia Piovesan. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 83-84.

[14].    Paolo Barile, Enzo Cheli e Stefano Grassi, enfrentando o problema relativo ao grau hierárquico do direito internacional frente ao direito interno italiano, segundo o que dispõe o art. 10, parágrafo primeiro, da Carta italiana, lecionaram: “Circa il grado delle norme [normas internacionais] immesse, si sostiene da alcuni (A. Cassese) che esse hanno l’efficacia di norme costituzionali, di norme primarie o di norme secondarie a seconda che la materia che esse disciplinano sia regolata (o debba essere regolata) nell’ordinamento italiano con norme costituzionali, primarie o secondarie, giungendosi fino al punto di ammettere che le norme immesse possano modificare o abrogare norme costituzionali: il che vanificherebbe l’art. 138 C. (la stessa dottrina, peraltro, ammette che non possano infrangersi i cardini essenziali del nostro ordinamento, come i diritti fondamentali dell’individuo o la forma repubblicana di governo). La dottrina prevalente peraltro nega che le norme immesse possano derogare alle norme costituzionali, riconoscendo loro solo una ‘forza derogatrice’ e una ‘resistenza passiva’ contro le norme primarie, rispettivamente anteriori e successive, identica a quella che possiedono le norme costituzionali” (Istituzioni di diritto pubblico, p. 57).

[15].    Francisco Campos. “Imposto de vendas e consignações – Incidência em sobretaxas cambiais – Ágios e bonificações – Acordos internacionais sobre paridade cambial”, p. 452-458.

[16].    Neste mesmo sentido vide, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Direitos humanos fundamentais, p. 98), e também Alexandre de Moraes (Direitos humanos fundamentais, p. 304).

[17].    Cf. Valerio de Oliveira Mazzuoli. “A influência dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos…”, p. 98; e, também, “A Constituição de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos”, p. 30.

[18].    Sobre o assunto vide o nosso Alienação fiduciária em garantia e a prisão do devedor-fiduciante: uma visão crítica luz dos direitos humanos, p. 81 e ss.

[19].    Para o estudo da matéria, vide o nosso Alienação fiduciária em garantia e a prisão do devedor-fiduciante: uma visão crítica à luz dos direitos humanos, já cit.; cf., ainda, Valerio de Oliveira Mazzuoli e Nydia Maria Barjas Ramos, “Ilegalidade da prisão civil do devedor-fiduciante em face da derrogação do art. 1.287 do Código Civil pelo Pacto de San José da Costa Rica”, jul./set. 2000.

[20].    Cf. Valerio de Oliveira Mazzuoli. Direitos humanos & relações internacionais, p. 148 e ss.

[21].    Cf. Mirtô Fraga. O conflito entre tratado internacional…, p. 83.

[22].    Mirtô Fraga. Idem, p. 83-84.

[23].    Cf. Mirtô Fraga. Op. cit., p. 84.

[24].    Mister aqui fazer uma observação que faz Mirtô Fraga: “A interdição, convém ressaltar, se verifica, apenas, em caso de tratado-lei. Se o Estado firma o chamado tratado-contrato, pode editar lei interna geral, que, entretanto, não incidirá nos casos regidos pela norma convencional. O tratado-contrato, configurando uma situação particular, se destina a regular as relações entre as partes, e suas disposições, nas hipóteses por ele previstas, deverão ser aplicadas, pelos Tribunais” (Op. cit., p. 99). Mais adiante, esclarece: “A conclusão do acordo constitui uma interdição ao legislador de editar norma que lhe seja contrária, para reger a mesma situação já regulada no pacto firmado. Assim, uma lei geral, por exemplo, de extradição, pode dispor de forma diversa do tratado celebrado com outros Estados, porque ela não terá aplicação nas situações previstas nesses tratados, mas apenas e tão-somente, na ausência total de ajuste, ou na omissão deste. Se porém, o tratado é geral, isto é, se se destina a regular, amplamente, determinada relação jurídica, e não situação particular, a interdição ao legislador é total, não podendo ele aprovar lei que contrarie o ajuste celebrado. É a conclusão a que se chega, em virtude de princípios implícitos na Constituição Federal, observando-se, dessa forma, o princípio superior pacta sunt servanda, que o Brasil deve respeitar” (Op. cit., p. 133).

[25].    Mirtô Fraga. Op. cit., p. 132.

[26].    Para Maria Helena Diniz, o critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali) “visa a consideração da matéria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Entre a lex specialis e a lex generalis há um quid specie ou uma genus au speci. Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também esteja previsto na geral (RJTJSP, 29:303). O tipo geral está contido no tipo especial. A norma geral só não se aplica ante a maior relevância jurídica dos elementos contidos na norma especial, que a tornam mais suscetível de atendibilidade do que a norma genérica” (Conflito de normas, p. 39).

[27].    O Governo Brasileiro aderiu à Convenção por intermédio de nota da legação em Berna, datada de 26 de agosto de 1942, encaminhada ao Secretário-Geral da Liga das Nações, posteriormente aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n.º 54/64, e promulgada pelo Presidente da República pelo Decreto n.º 57.595/66.

[28].    Vale aqui, fazer uma observação de Pedro Dallari (“Normas internacionais…”, p. 31): “Aqui há apenas uma impropriedade, pois não é o Congresso o ente que ratifica um tratado; na verdade, através de decreto legislativo, o nosso parlamento federal autoriza a ratificação, que é ato próprio do Poder Executivo, a quem compete, nos termos da Constituição Federal, celebrar acordos internacionais. Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal emanou de caso em que se discutiu a validade de decreto-lei – que versa sobre notas promissórias – face à Lei Uniforme de Genebra, tratado internacional que disciplinou os títulos de crédito”.

[29].    “Após o Supremo Tribunal Federal ter aludido à Lei Uniforme no Recurso Extraordinário n.º 58.713, pela sua Terceira Turma (Rev. Trim. de Jur., 39/450), e no conflito de jurisdição suscitado pelo juiz de Itapira (ibidem, 48/76), posteriormente deu, de forma direta e inequívoca, aplicação às leis genebrinas das cambiais e do cheque, primeiro no Rec. extr. n.º 70.356, relatado pelo Min. Bilac Pinto, em 19 de maio de 1971 (ibidem, 58/744), e, pouco depois, a 4 de agosto seguinte, no Rec. extr. n.º 71.154/70, relatado pelo Min. Oswaldo Trigueiro (ibidem, 58/70), tornando-se desde então ponto pacífico a real integração daquelas leis uniformes em nosso direito interno.” (Rubens Requião. Curso de direito comercial, p. 312).

[30].    Sobre a polêmica da vigência da Lei Uniforme no direito brasileiro, vide Fran Martins, Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória, p. 44-45. Para Mirtô Fraga: “(…) as Leis Uniformes, embora em vigor, não afastam certos dispositivos de normas internas, que continuam, também, em vigor, seja porque houve reserva do Brasil a determinados artigos daquelas, seja porque certos assuntos não foram disciplinados pelas Convenções de Genebra. Se se entender conveniente, seja a matéria tratada, somente, em uma fonte de Direito, a norma interna, que o fizer, deverá observar as disposições a que o Brasil não opôs reservas” (Op. cit., p. 97).

[31].    Mirtô Fraga, em seu primoroso trabalho, bem explica esse posicionamento: “Em seu voto, o relator, Ministro Oswaldo Trigueiro, examina a dúvida suscitada a respeito da vigência – no plano do direito interno – das Leis Uniformes, pelo simples decreto de promulgação. Não concorda com o argumento dos que entendem depender essa incorporação de diploma legal em que se discipline a mesma matéria contida no tratado. O argumento principal dos que sustentam essa posição se apóia na afirmativa de que, no sistema brasileiro, a lei só se revoga por outra lei, não tendo nossa Constituição determinado a imediata eficácia do tratado se esse for colidente com o direito interno. Para ele, a autorização está implicitamente contida na Lei Maior, uma vez que ao mesmo órgão a que se atribuiu, especialmente, a competência de legislar, outorgou-se, por igual, a de aprovar os tratados assinados pelo Presidente da República, não se justificando fique o Congresso, depois, obrigado a repetir, em texto de lei, o disposto em tratado, a fim de que ele possa ser aplicado pelos Tribunais. Dessa desnecessidade o Ministro deduziu que as disposições do tratado revogam as de leis ordinárias anteriores, com ele incompatíveis” (Op. cit., p. 106-107).

[32].    Nesse sentido: Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, “Normas internacionais…”, p. 31-32; e José Francisco Rezek, Direito dos tratados, p. 383.

[33].    ADIn 1.480-DF, rel. Min. Celso de Mello, Informativo do DJU de 13.05.1998, n.º 109. Vide ainda, neste sentido: RJTJRS, vol. 4, pág. 193, rel. Des. Paulo Boickel Velloso.

[34].    Neste caso em particular: “O recorrente havia avalizado notas promissórias, emitidas em favor do recorrido, que não as levara a registro. Movida a ação ordinária de cobrança, o juiz o julgou carecedor de ação, por entender nulos os títulos, por vício de forma – a falta de registro –, e, em conseqüência, insubsistente a obrigação de quem os havia subscrito como avalista. O Tribunal de Justiça reformou a sentença, admitindo que ‘a falta de registro, por si só, não invalida a responsabilidade do avalista’, que poderia ser apurada pela via ordinária. O recurso interposto, com base em dissídio jurisprudencial, foi admitido. Na impugnação ao recurso e nas contra-razões, o recorrido alegou a invalidade do Decreto-Lei n.º 427/69, em face da Lei Uniforme, inovando, assim, em sua defesa. Apesar de não ter sido essa matéria prequestionada e não obstante as Súmulas n.ºs 282 e 356, entendeu-se que a questão devia ser examinada, uma vez que para concluir-se pela insusceptibilidade de cobrança, contra o avalista, de nota promissória nulificada pela falta de registro, não se podia ‘deixar de aplicar o preceito legal impugnado e de reconhecer como válida a imposição de sanção de nulidade” (Mirtô Fraga, O conflito entre tratado internacional…, p. 108).

[35].    Na crítica de José Carlos de Magalhães: “O que fica dessa decisão, contudo, é a impressão de recuo do Supremo à aceitação da prevalência do direito internacional. (…) Afastando-se da orientação anterior, não atentaram aqueles Ministros para a problemática da responsabilidade do Estado na ordem internacional” (“O Supremo Tribunal Federal e as relações entre direito interno e direito internacional”, p. 56).

[36].    Cf. Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, Prisão civil do depositário infiel em face da derrogação do art. 1.287 do Código Civil pelo Pacto de São José da Costa Rica”, p. 37-52.

[37].    Cf. José Francisco Rezek. Direito internacional público…, p. 106.

[38].    Acórdão do REsp 5.344-MG, da 3.ª Turma do STJ, de 11.03.91, rel. Min. Eduardo Ribeiro.

[39].    Papiniano (Digesto, liv. 50, tít. 17, frag. 80). Apud. Carlos Maximiliano. Op. cit., p. 135.

[40].    German J. Bidart Campos. El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa, p. 461.

[41].    G. J. Bidart Campos. Idem, ibidem.

[42].    G. J. Bidart Campos. Idem, p. 462. O autor reconhece, entretanto, que a maioria do direito interno dos Estados não deu eco suficiente a este ponto de vista que, doutrinariamente e pela primeira vez, esboça ele claramente na obra já citada. Mas assevera: “No obstante, nos hacemos cargo de que, empíricamente, siegue siendo la constitución de cada estado la que, como fuente primaria del orden jurídico interno, decide el tema de una manera u outra, lo que no empece a que, personalmente, pregonemos el ‘deber ser’ expuesto en el texto” (Op. cit., p. 463, nota n.º 8).

[43].    Cf. G. J. Bidart Campos. Idem, p. 463. E conclui o autor: “Si luego define la supremacía de la constitución respecto de él, incurre en una contradicción consigo misma o, al menos, en una incongruencia, porque niega la jerarquía que el próprio derecho internacional se atribuye como principio o norma general de su ordenamiento. La contradicción no se redime por decir – con acierto – que la constitución es la fuente primaria del orden jurídico estatal y que, como tal, escalona jerárquicamente sus distintos planos según decisión propria. Y no se redime porque sigue siendo incongruente que si se asume dentro del derecho interno al producto de la fuente internacional, se lo haga desvirtuando el principio básico del derecho internacional, que es el de su primacía”. (Op. cit., p. 463-464).

[44].    Cf. o nosso Direitos humanos & relações internacionais, p. 93 e ss.

 

 


(*)   O texto do presente trabalho encontra-se regularmente depositado na Fundação Biblioteca Nacional (Escritório de Direitos Autorais-EDA/BN), registro n.º 207.698, livro 360, garantindo-se todos os direitos do autor (Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998).

Este artigo foi publicado em versão impressa nas: 1) Revista do Instituto dos Magistrados do Ceará, ano 04, n.º 08, p. 239-252. Fortaleza: IMC, jul./dez. 2000; 2) Revista Meio Jurídico, ano IV, n.º 41, pp. 36-41, jan./2001; e também na Revista da AJURIS (Assiciação dos Juízes do Rio Grande do Sul-Brasil), ano XXVI, n.º 81, Tomo I (doutrina), pp. 306-325, mar./2001.

(**)  Advogado no Estado de São Paulo. Primeiro classificado no “Primeiro Concurso Nacional de Monografias” sobre os 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, coordenado pela “Fundação Movimento Direito e Cidadania” e realizado pela PUC-Minas, UFMG e OAB-MG.

É também autor dos livros: “Alienação Fiduciária em Garantia e a Prisão do Devedor-fiduciante: uma visão crítica à luz dos direitos humanos”, Campinas: Agá Juris Editora, 1999; e Direitos humanos & relações internacionais, Campinas: Agá Juris Editora, 2000. Tem inúmeros trabalhos publicados em revistas especializadas.

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